sexta-feira, junho 17

Pista

a.
Carlos e Roberto eram amigos de infância.
Beto e Carlinhos – este último menor e mais magro sempre mais introvertido, e ao contrário do primeiro que era mais expansivo e extrovertido. Mesmo o tempo passando para eles, o tempo não passou entre eles, apesar dos interesses diversos (a literatura de Carlinhos, o futebol de Beto) passaram pelo tempo juntos. Juntos até a mudança de Beto (meu pai arranjou um bom emprego em outra cidade). Se separam ao final da oitava série.
Passou a época do colegial começou a faculdade, e um dia no ônibus circular que rodava pelo campus, Carlos viu uma figura que lhe parecia familiar
– Beto?
– Carlos? Carlinhos?

1.
            Raquel conheceu Júnior no dia de matrícula, perdida no campus a caminho do prédio da faculdade de seu curso ela sentiu uma mão no ombro
            – Você é caloura do Jornalismo também, não é?
        O rapaz era magro falava com um tom afetado que misturava um ar de deboche e de arrogância. Raquel simplesmente assentiu com a cabeça.
            – Ai que bom! Eu também, vamos logo sua louca!
            Puxou-a pela mão, e saiu correndo enquanto a observava.
            – Nossa! você é ruiva de verdade? Acho um tesão gente ruiva!
            Ela simplesmente riu enquanto tentava acompanhar o ritmo do menino
            – Ah, eu sou Júnior, prazer!
            – Raquel, prazer. Mas Júnior do quê?
            – Getúlio, Getúlio Júnior, mas Getúlio ninguém merece né?

b.
Beto havia mudado, os olhos verdes eram os mesmos, mas agora combinavam com cabelos cacheados e uma barba rala, era magro e alto e ainda tinha aquele jeito tranquilo e carismático. Carlos ainda era calado e mais introvertido, mas havia esticado, não lembrava mais o menino pequeno e mirrado, agora era quase da altura de Beto e sessões na academia lhe deram o biótipo mais forte, Carlos não era mais Carlinhos.
Marcaram um boteco uma noite, e viram a madrugada relembrando as várias histórias que possuíam em comum, e atualizando um ao outro o que tinha mudado desde a separação há anos atrás.
– Pois é, voltei para cá quando passei na faculdade, moro em uma república aqui perto – concluiu Beto ao fim de um gole.
            – Puxa, que legal! Que curso?
            – Engenharia de Produção, e você?
            – Audiovisual.
– Ainda na casa dos seus pais?
– Não, não, moro com minha namorada. E você?
– Eu o que?
– Nenhuma namorada?
Beto deu um sorriso, já estavam bebendo havia algum tempo, o álcool o liberaria a ser sincero
            – Ah cara, lembra meu pouco interesse na época da escola? Na verdade era um interesse nenhum
E concluiu com um sorriso meio sem graça que deixou claro qualquer dúvida que Carlos poderia ter.
            – Sério, cara!? Mas então, algum namorado então?
(outro sorriso sem graça de Beto)
            ­– Não, não
            – Fica sem graça não, eu não ligo. Juro que nunca desconfiei
            – Na verdade, naquela época nem eu, acho que não entendia o que passava comigo, só me dei conta direito depois.
            – Você precisa conhecer a Ana, minha namorada

2.
         Raquel e Júnior apesar das disparidades tornaram-se unha e carne nos corredores e aulas da faculdade de Jornalismo. Júnior não se intimidava em dar bandeira, adorava gargalhar alto e contar várias das suas histórias, suas diversas aventuras na noite (sou um prostituto! Para ser de fato só falta cobrar, porque a rotatividade meu bem, é alta!). Apesar do corpo franzino possuía um magnetismo pessoal que atraia vários colegas ao redor de si, mas com quem contava, quem realmente conhecia o Júnior por de trás das gargalhadas e do mise-en-scène era Raquel.
            Era com ela que ele contava o que realmente importa, era com ela ele que abaixava a bola e ficava mais a vontade, relaxava nos gestos e na voz, e que se permitia ficar triste e ouvir conselho sem retrucar ou sem aquela necessidade de sempre sair por cima com uma resposta cortante.
            Raquel que falava pouco lia bastante e só comia coisas saudáveis, essa era Raquel para os outros colegas, mas não para Júnior, para ele Raquel era reservada, mas tinha um comentário para tudo, muito observadora, conseguia ser mais venenosa que o amigo às vezes, sensata, ela segurava a onda do amigo quando via que esse passava do limite, era insegura também e nos dias de baixa auto estima recorria aos ombros do amigo (minha filha, então tanta leitura serve para quê?). Raquel ruiva como Júnior adorava chamá-la. Raquel que por baixo das roupas largas possuía um belo corpo curvilíneo (meu avô me ensinou que belas mulheres são gazelas, então você é a gazela ruiva).
            Ele sabia que tantos amigos e conhecidos dos corredores do campus e das festas e baladas era tudo parte de algo efêmero e artificial. Contar mesmo só com Raquel (minha ruiva, não me abandona nunca viu...)
           
c.
E virou programa habitual, um barzinho, um cinema ou um restaurante, Beto se encontrava com Carlos e Ana e a empatia entre os dois amigos renascia apesar do hiato que passaram. Beto adorava Ana, Ana adorava Beto (Menina de ouro para um menino de ouro, dizia)
– Cara, quando você quiser, pode trazer alguém
– Tranquilo
– Você sabe que eu e a Ana não nos importamos
– Eu sei, vocês são ótimos, mas não existe ninguém não
– O dia que você cansar de ser vela, você leva
– Engraçadinho
Mas Beto nunca apareceu com ninguém. Os programas sempre a três, e de fato ambos voltaram a serem melhores amigos, voltando a ocupar no coração um do outro o antigo espaço que habitavam, e que ninguém mais esteve no tempo que ficaram sem se falar
– Que dia vocês vão me acompanhar a uma balada?
– Hmmm... Não sei
– Eu gosto desses nossos programas, mas quero levar vocês para pista um dia
– A gente combina um dia, promessa

3.
Se Júnior era uma criatura de amores de uma noite de duração, Raquel não poderia ser mais diferente: colecionava amores platônicos que duravam bons tempos.
Um desses amores, Gustavo, um colega de classes dos dois, saiu das brumas dos sonhos graças a uma intervenção de Júnior, o romance, porém acabou justamente com o fim do semestre letivo, Raquel descobrira depois que Gustavo mais que uma namorada, buscava em Raquel uma ajuda com as notas, para não ficar mais uma vez com várias dependências.
– Quando a gente vai parar com isso?
– Isso o quê?
­– Eu promíscuo e você platônica
– Pois é, e nenhum dos dois jeitos não leva a nada...
– Acho que quando aprendermos que no final só resta mesmo eu e você, você e eu, ruiva
– Só eu e você, velhinhos
– Cada um em uma cadeira de balaço, em um alpendre de casa do interior vendo a vida passar
– Mas pode ficar ciente que mesmo de cabelos brancos, você continuará sendo a minha ruiva viu!?

d.
E o dia dos três na balada nunca aconteceu, o dia que veio foi o do celular de Beto tocando às duas da manhã – era quarta-feira, ele dormia, e ainda com os olhos semicerrados leu o nome de Carlos no visor. Do outro lado de linha havia choro e soluço
– Cara, preciso te ver
– Calma cara o que foi? O que aconteceu?
– Meu, estou mal
Havia sido Ana (como ela pode cara? Na nossa cama, na nossa casa!) transando com um cara do trabalho (devia ter desconfiado, ela andava estranha) e assim acabavam cinco anos de namoro, três de casa em comum. Beto tentava consolá-lo, dividindo desventuras suas também: flerte com um colega de classe, nascimento de expectativas com uma correspondência dele, um encontro ao acaso na balada, ele fica aos beijos com o carinha na pista, mas numa ida ao banheiro é trocado por outro. Mas não era pior que a situação de Carlos, nada parecia pior.
Aumenta o contato entre os dois, (meu número vira seu número de emergência hein!?) torpedos diários, encontros marcados no campus durante a semana, ligações telefônicas no fim do dia; agora os encontros eram somente entre os dois. A amizade ajudava Carlos a se curar da traição.

4.
            – Ruiva, não fica assim não viu!?
            (consolava Júnior com o braço ao redor de Raquel)
            – Na projeção que eu fazia dele, ele era bem mais íntegro
            – Por que será né? Porque era uma projeção Raquel!
           – Também, quando é que eu vou aprender, e parar de agir como uma adolescente que faz corações nas folhas de cadernos da escola
            – Minha vida de putinho é tão pouco, ou nada melhor que a sua
            – Como você pode? Ficar se chamando assim?
            – Ah, pelo menos a gente se diverte
            – E como não? As suas mensagens deprimidas para mim no final da balada que o digam, não é!?
            – Acabei de falar que no final estamos na mesma barca furada, mas fica triste não Gazela, eu te amo
(a abraça mais forte e tasca um beijinho no pescoço)
– Também te amo, seu bobo


e.
– Cara, tenho uma idéia: vamos sair de balada
– Sério? Tem certeza? Não funciono para interagir nesse tipo de lugar...
– Bobagem, mas não dá para irmos a nada hetero, não quero ficar dando fora em menininhas à noite toda
– Ah, que metido!
– Que nada, isso é experiência própria
– Mas também não vou te levar em nenhum lugar que te constranja
­– Tem opção?
– Tem sim, conheço um lugar que os meninos vão pela música e pelos outros meninos, mas sempre levam várias amigas bonitinhas
E foram à balada, pela primeira vez juntos, Carlos veria talvez pela primeira vez Beto com outro cara, e Beto veria pela primeira vez Carlos beijando outra menina que não Ana. Beto não mentira, várias meninas dançavam na pista com meninos que não pareciam seus namorados. Mesmo pouco habituado a esse tipo de programa até que Carlos gostava das luzes e da música dançante. De repente uma sensação estranha: imaginou Beto beijando outro homem, nojo? Não, não, realmente não tinha problema com isso. Foi mais um medo, uma possível reação de abandono.

5.
            – Minha ruiva, por que você não se joga comigo esse fim de semana?
            – Ah Ju, sei lá, acho que não vou me sentir confortável...
            – Querida, não vou te levar em uma sauna não, é só uma balada
            – Não sei não...
            – Te levo onde sempre tem uns heteros bonitinhos perdidos
– Será? Não funciono para interagir nesse tipo de lugar...
            – Para com isso! Você vai amar, juro!
          Raquel ficou em silêncio, Júnior nunca a tinha arrastado para esse tipo de programa, de resto já tinham feito tudo juntos, mas balada de fato nunca, ela tinha certa aversão a se imaginar naquele ambiente “esquizofrênico”. Pensou com carinho no pedido do amigo, reconsiderou: na pior das hipóteses, voltaria mais cedo para casa, no mínimo seria engraçado ver o amigo “em ação” como ele gostava de dizer.
            – Ok, ok... eu saio com você,
– Demorou para esse dia acontecer hein!?
– Vamos ver se pelo menos você apaga esse fogo...
            – Fogo aqui é você, fogo ruivo

f.
            – E aí, está curtindo?
            – Aham, ambiente bem legal
O volume da música os levava a falar no pé do ouvido um do outro
– Nenhuma menina interessante?
– Na verdade várias, mas sou um desastre em chegar junto
– Entendo, você está a um tempão fora de circulação, né?
– Sim, e nunca fui muito bom nisso, e você? alguém legal?
– Até que sim, mas estou de boa...
Carlos observava uma ruiva já a um bom tempo, ela dançava com um amigo, provavelmente um amigo... e se? Já tinha feito isso uma vez na época do colegial com outro amigo (você chega na amiga e eu chego nela) talvez Beto toparia se achasse que o amigo da ruiva fosse interessante, precisava perguntá-lo a respeito disso. Chegou perto dele, roçando sem querer a ponta de seu nariz na nuca dele
– Nossa, que perfume bom esse seu
(mas seria só o perfume?)
Beto se afastou um pouco, para olhando para os olhos castanhos e profundos de Carlos, olhando espantado com o comentário; e apesar da música alta que tocava ambos sentiram um silêncio abissal cair entre eles.
O que se seguiu foi de total espanto para Beto, Carlos agiu de maneira quase que mecânica: passou seu braço pela cintura do amigo, puxando-o para si, cerrou seus olhos e inclinou sua cabeça enquanto abria lentamente os lábios, para ter entre eles, os lábios de Beto.

6.
            – Ah, que decepção!
            – Que foi ruiva?
            – Sou ruim mesmo para decodificar esses códigos de paquera
            – Por quê?
           – Jurava que o menino estava lançando uns olhares para mim, mas ele acabou de beijar o amigo que estava junto com ele
           – Aquele fortinho? Meu deus! É mesmo olha lá, mas eu jurava que ele não era do babado, o amigo até parou no meu radar, mas o outro dançava tão duro, nem cogitei que eram um casal...
            – Engraçado, sério que eu senti um olhar vindo dele
           – Vai ver ele é um hetero no armário, e ia dar um perdido no namorado e ia chegar junto de você... Hahaha
            – Acho que vou para casa
            – Ah não Gazela, espera.
            – Esse ambiente é seu habitat não meu, eu não sou assim
            – Não vai embora sem beijar
            – Tá bom, não vou embora sem beijar
            Ao falar isso no ouvido de Júnior, com o rosto colado ao dele Raquel não pode deixar de rir; sentia a mão dele segurando a sua, impedindo-a de ir. Ela afastou seu rosto, e olhando naqueles penetrantes olhos escuros do amigo sentiu a única coisa com vontade de fazer, encostou sua face na face dele, primeiro as testas, depois a ponta dos narizes, para então encostar seus lábios nos lábios dele, que apesar do susto inicial, respondeu com vontade depois de compreender a situação.
Júnior começou sendo beijado, com o braço envolvendo o dorso de Raquel (minha ruiva, ruiva gazela) continuou o beijo, se antes sendo beijado, agora beijando, descobrindo o novo, uma diferente textura, que também era boa e entendendo que o final do enredo às vezes poderia ser outro na pista.

segunda-feira, junho 13

Algo sobre Direitos Humanos

Inscrevi-me em um concurso para Técnico de Laboratório no Instituto de Tolerância da USP. Não passei, pois creio ter zerado a prova prática de Final Cut (a marmota de um programa de edição de vídeo que eu nem sabia que existia). Pois é. O fato é que a bibliografia para a prova teórica me arrebatou. Dez livros sobre direitos humanos. Li todos e quanto mais eu lia, mais me encantava! É um assunto apaixonante! Direitos Humanos!!!! Adoraria me especializar nisso!!! Gostaria de reformular a Declaração Universal dos Direitos Humanos e conseguir que todos os países (todos mesmo) assinassem a nova versão. É que a Declaração de 1948 foi escrita por alguns gatos pingados, assinada por menos de 20 países e espera-se que o mundo todo concorde com ela e a siga como regra. Injusto, absurdo e inaplicável.
Obviamente minha pretensão é enorme... Mas é diretamente proporcional ao tamanho do problema. Como querer que países tão diferentes adotem um mesmo conjunto de regras? A globalização aproximou os países nos aspectos tecnológicos e científicos, mas nos costumes e tradições pouca coisa mudou. Acho até que houve uma valorização das tradições! No Brasil, por exemplo, é crescente o movimento de valorização da cultura caipira!!! O caipira, que antes era alvo de chacota e preconceito, hoje é considerado um representante legítimo do Brasil. O índio também! Hoje em dia há na Constituição leis que os protegem e que legislam sobre a educação indígena, a fim de que a cultura deles não se perca.
Por outro lado, esse movimento de valorização, quando mal direcionado, infla intolerâncias e preconceitos. O projeto de impedir estrangeirismos na Língua Portuguesa é um exemplo. Alegando estar querendo evitar a corrupção da Língua, o deputado que propôs essa medida ignorou que a Língua é viva e que o aumento do léxico não prejudica a estrutura! A xenofobia é um outro problema... ainda mais grave.
Há muitos aspectos a se considerar nesse assunto... mas já chega. Termino com uma bela citação: “(...) temos o direito a ser iguais quando a diferença nos inferioriza; temos o direito a ser diferentes quando a igualdade nos descaracteriza” (Boaventura de Sousa Santos)

sábado, maio 28

fuso da roca

Mas o que são cem anos para quem ama?
Esta frase o marcou, poderiam muitas outras coisas o ter marcado, ele poderia ter levado com ele outras coisas vida a adentro, mas daquele VHS d’A Bela Adormecia foi a frase da bruxa Malévola que ele levou vida adentro; mais que a própria figura da bruxa, com seus córneos, pele verde, capa & gralha, mais que a beleza virginal da princesa Aurora, mais que as ações do valente príncipe Filipe. Não. Nada disso. Mas o que são cem anos para quem ama?
Uma semana que durava cem anos, sua primeira paquera, a garota que encontrava toda quinta-feira à noite. Tinha doze, treze anos? Só se lembra dela, e quanto demorava em chegar cada quinta à noite, seus cabelos lisos que caiam nos ombros, sempre de uniforme escolar, os expressivos olhos cor-de-amêndoa e a boca rosa com os pequenos lábios carnudos. A deliciosa agonia de esperar às quintas à noite, esperar tanto para tão pouco! Vê-la durante uma, duas horas, mas como valia a espera. Entendia o sarcasmo da bruxa, quem realmente ama aguentaria sem pestanejar cem anos, se ao final de século pudesse enfim ter consigo a criatura amada, quantos séculos passaram, mas nunca em vão pois ao final de cada século, a chegar ao fim da tarde de cada quinta-feira a espera tinha valido a pena, e os ponteiros agora corriam com outra velocidade.
Descobrira depois que o problema não eram os cem anos que esperavam os que amavam, estes cem anos tinham um fim, tinham uma causa final, é história com teleologia. Ao fim descobrira uma indagação mais cruel que a sarcástica pergunta da bruxa ao príncipe, uma pergunta mais maldosa, facada no escuro, veneno concentrado. Mas o que são cem anos para quem não ama? Longo inverno sem promessa de primavera, dor sem anestesio, o poço sem fundo, sou um pouco Buendía.
Mas o que são cem anos para quem não ama?

quarta-feira, maio 25

Aurora

Em meio a nuances de cinza que mergulhavam o espaço da casa no silêncio da madrugada, ele permanecia imóvel na sua cama. Seu olhar, no entanto, deslizava pelas superfícies dos móveis, tocava as cortinas, reconhecia cada uma das angulações caleidoscópicas formadas pelas paredes de seu quarto. E permaneceria contemplativo por alguns minutos, até escorrer dos lençóis para outro dia.
No banheiro, preferiu não acender as luzes. Lavou o rosto demoradamente, secou-se diante do espelho, vislumbrando-se por alguns momentos. Não conseguia reconhecer-se ainda: seu reflexo, dissolvido pela sensação de outridade, era apenas vulto – ou o desdobramento de uma coleção de sombras, de contornos ainda vazios de identidade. E a única coisa alinhada ali, naquela fração de dia, era sua respiração, profunda, a acompanhar o som abafado pela distância das águas em fluxo repetitivo. As mesmas águas que decidiu contemplar.
No seu movimento para fora de casa, por onde passava, o assoalho sussurrava sob seus pés: “venha, venha.” A porta dos fundos apresentou-lhe uma paisagem diferente daquela com a qual habituara-se todas as manhãs. A neblina invernal metamorfoseara os jardins em nebulosa, engolindo o horizonte. Tudo o que restara ali era a trilha de cascalho entre os canteiros de flores, conduzindo para além dos muros de sua casa.
Caminhando sobre as pedras, o mundo parecia fechar-se em denso segredo. Olhar colado ao solo, em solo o universo fez-se chão, e as texturas alternando-se vagarosamente, até a areia da praia, úmida, macia, uniforme, dominar a visão. Sobre ela, pegadas inscreviam o humano no mundo. Etéreo e onipresente, o ruído branco que o mar provinha contrastava com a polifonia da memória e com as veredas criadas pelos passos firmes deixados por aquele rapaz na praia. Memórias que eram, igualmente, veredas, torturantes e oxidadas pelo contato com o ar.
Quanto mais explorava a polifonia de seus lembranças, mais perdia-se em si mesmo. E em perder-se, encontrava-se. Quanto mais solto em si, mais a sensação de plenitude e segurança ganhava substância pele adentro. Aos poucos, o vazio em seu peito preenchia-se de conforto pois, ali, completamente sozinho a ausência tornava-se presença, o estado puro de uma felicidade experimentada como inexistência de qualquer respiração além da sua.
Extático, a água finalmente tomou seus pés. Ondas lentas e disciplinadas revolviam a areia que sustentava. O chão, instável, impôs-se como metáfora da vida, sua vida, enquanto lágrimas rolavam pelo seu rosto, em queda livre, de encontro com o mar. Lembrou-se dos pais, de sua infância, do companheiro que deixara para trás, envolto em sono profundo. Passou a mão em torno do pescoço, como se sentisse sufocado. Parou por um instante, percebendo o avanço da claridade. Voltou a caminhar e quanto mais penetrava o mar, mais o curso das lembranças que serpenteava havia dias em sua cabeça encontrava uma foz. Seu choro diluía seus sentimentos no mar. Sal encontrando o sal no mesmo ritmo em que seus últimos dias despedaçavam-se feito papel molhado.
Cadente, o mar aconchegou-se à sua cintura. A água cortava, de tão gelada. Porém, o frio não causava-lhe incômodo. Ao contrário: parecia confortá-lo. Em seus pensamentos, a vida era-lhe mais gélida que o mar naquela manhã, a convivência com as pessoas arroxeava-lhe a alma e a inexorável passagem dos dias fazia-lhe ranger os dentes de dor, muito mais que o frio. Parou de pensar, mas não de mover-se. E com o mar já acariciando-lhe os lábios, encheu seu peito daquilo que o sufocava pela última vez. Naquele instante, ele abandonara a extenuante deriva da vida, partindo para o que parecia-lhe o mais absoluto dos portos.

quinta-feira, abril 28

magma


“The apparition of these faces in the crowd;
Petals on a wet, black bough”
Ezra Pound
In a Station of the Metro


metrô – sempre gostou de metrôs; cidade subterrânea debaixo da cidade, caminhos construídos sob pés de muitos, levando outros muitos pés. os rápidos encontros que se davam dentro de rápidos vagões acelerados rasgando a terra a uma velocidade enorme. se arrastando pelos pisos de mármores e granitos era familiar aquela sensação conjunta de libido e melancolia que invadia diante de tanta beleza, beleza mais bela que sua, o diminuía mas parecia convidar a ser possuída. ser servo e caçador. nas bocas de estações enquanto descia uma escada rolante observava quem na direção contrária vinha, ou se subia prestava a atenção a quem descendo entrava. os diversos rostos que iam surgindo na esteira, os vários corpos que se movimentavam parados no ritmo da máquina. no ritmo único rostos vários ritmo monótono corpos dinâmicos ritmo constante inconstância das faces. se apaixonava perdidamente, nos furtivos acelerados encontros nos simples esbarros nas belas imagens que os olhos como objetiva fotográfica simplesmente capturavam, se apaixonava – perdidamente. viscosa rotina escorrendo para fora: tudo fazia sentido ali na pessoa amada ilustre desconhecida: razão de minha vida. atitude quotidiana de se apaixonar – criando uma diversa estratégia do guerrilheiro subterrâneo do camuflado apaixonado, aprendendo a criar distâncias seguras de observação sem dar bandeira ou se valendo do reflexo de vidros das janelas. meu reino por ti – onde nada mais faria sentido de não fosse essa minha paixão onde te persigo até o vagão que estás (e se fizermos mesma baldeação – mesma perseguição) (só nunca teve coragem de mudar de rota em função de tanto amor – um covarde apaixonado) não encostem em nada, vocês não tem olhos nos dedos. professora da segunda série babaca! tenho sim! mil vezes tenho olhos nas pontas dos dedos que querem ver com o tato e tenho tato nos olhos míopes que querem te ver mais de perto e tenho vista nas narinas que querem te cheirar de perto e tem sede meus ouvidos e como vê minha língua ávida pelo paladar das peles. ah criatura estranha, quotidiana agonia, rápido desejo efêmero dos vagões subterrâneos, meu globo gira nesse momento diante de tua órbita e nada mais faz sentido nesse instante se não te desejar e me arder oh bruta flor do querer. outro toque que não esse da barra de ferro que agarro, ah! possibilidade de me agarrar a outras superfícies não tão gélidas não tão férricas superfícies outras mais quentes mais humanas mais tuas criatura amada coisa querida, querida e desconhecida. diante de tanto platonismo havia hora que havia de fato toque, pois não é que me sentava do lado da pessoa amada e dela sentia em minha perna o toque de sua perna, que no toque de nossas pernas sentia o seu calor e como ardia oh como eu ardia de amor e de agonia sabendo que aquele simples toque era tudo que eu podia, de ti ter apenas aquele toque ardendo de amor e agonia. tudo tão efêmero tudo tão rápido ou as vezes só louco por um pedaço, um doutor frankenstein subterrâneo: e que eu levo é só um pedaço de uma anatomia, construo uma projeção de retalhos de que me apaixono. louco e médico. mas – ah mas! – um rasgo no fino frágil véu de minha paixão: sussurro da fatal voz seca (a voz rotina de todo dia acompanhada a campainha igualzinha dia após dia) anunciando o nome (mas qual nome? dessas tantas pessoas amadas nunca saberei o nome?) – o nome de mais uma parada – parada-parada sempre ali e sempre mesmo nome mesma rotina viscosa rotina tédio dia-a-dia. e a porta se abre meu amor se esvai ou sou eu que me vou c’est fini adieu ma cherie. a vida caindo de novo sobre mim eu caindo em si e de mais nem nada lembrarei, tão efêmero que foi tão intenso que foi.

O novo latim

Conectados pelo novo latim, os dois riscaram a alvura da neve acumulada no chão. Falaram sobre tanta coisa, riram de tanta coisa, observaram tanta coisa. Nos corpos, expressões da diferença: os cabelos cor de cenoura, a pele rosada, e os olhos absurdamente azuis de um contrastavam com os cabelos castanhos, os olhos de avelã e a pele brasileira do outro. Conduziram seus desejos até a esquina da despedida. Nela, abraçaram-se entre suspiros. Quando se afastaram, as mãos ainda continuavam nos corpos; as sombras agigantadas no chão faziam de seus braços pontes entre continentes. Então, ensaiaram uma nova aproximação, um beijo. Olharam-se nos olhos, depois fitaram suas bocas; hesitaram; e então... disseram-se “boa noite”, sob cristais que flutuavam pelos céus.

A noite branca foi inclemente com seus rastros nos instantes seguintes e suas marcas sobre as calçadas esvaneceram sob alvo manto. Mas a memória daquilo que neles ficaria guardado como possibilidade manteria frescor e doçura para sempre.