sábado, maio 28

fuso da roca

Mas o que são cem anos para quem ama?
Esta frase o marcou, poderiam muitas outras coisas o ter marcado, ele poderia ter levado com ele outras coisas vida a adentro, mas daquele VHS d’A Bela Adormecia foi a frase da bruxa Malévola que ele levou vida adentro; mais que a própria figura da bruxa, com seus córneos, pele verde, capa & gralha, mais que a beleza virginal da princesa Aurora, mais que as ações do valente príncipe Filipe. Não. Nada disso. Mas o que são cem anos para quem ama?
Uma semana que durava cem anos, sua primeira paquera, a garota que encontrava toda quinta-feira à noite. Tinha doze, treze anos? Só se lembra dela, e quanto demorava em chegar cada quinta à noite, seus cabelos lisos que caiam nos ombros, sempre de uniforme escolar, os expressivos olhos cor-de-amêndoa e a boca rosa com os pequenos lábios carnudos. A deliciosa agonia de esperar às quintas à noite, esperar tanto para tão pouco! Vê-la durante uma, duas horas, mas como valia a espera. Entendia o sarcasmo da bruxa, quem realmente ama aguentaria sem pestanejar cem anos, se ao final de século pudesse enfim ter consigo a criatura amada, quantos séculos passaram, mas nunca em vão pois ao final de cada século, a chegar ao fim da tarde de cada quinta-feira a espera tinha valido a pena, e os ponteiros agora corriam com outra velocidade.
Descobrira depois que o problema não eram os cem anos que esperavam os que amavam, estes cem anos tinham um fim, tinham uma causa final, é história com teleologia. Ao fim descobrira uma indagação mais cruel que a sarcástica pergunta da bruxa ao príncipe, uma pergunta mais maldosa, facada no escuro, veneno concentrado. Mas o que são cem anos para quem não ama? Longo inverno sem promessa de primavera, dor sem anestesio, o poço sem fundo, sou um pouco Buendía.
Mas o que são cem anos para quem não ama?

quarta-feira, maio 25

Aurora

Em meio a nuances de cinza que mergulhavam o espaço da casa no silêncio da madrugada, ele permanecia imóvel na sua cama. Seu olhar, no entanto, deslizava pelas superfícies dos móveis, tocava as cortinas, reconhecia cada uma das angulações caleidoscópicas formadas pelas paredes de seu quarto. E permaneceria contemplativo por alguns minutos, até escorrer dos lençóis para outro dia.
No banheiro, preferiu não acender as luzes. Lavou o rosto demoradamente, secou-se diante do espelho, vislumbrando-se por alguns momentos. Não conseguia reconhecer-se ainda: seu reflexo, dissolvido pela sensação de outridade, era apenas vulto – ou o desdobramento de uma coleção de sombras, de contornos ainda vazios de identidade. E a única coisa alinhada ali, naquela fração de dia, era sua respiração, profunda, a acompanhar o som abafado pela distância das águas em fluxo repetitivo. As mesmas águas que decidiu contemplar.
No seu movimento para fora de casa, por onde passava, o assoalho sussurrava sob seus pés: “venha, venha.” A porta dos fundos apresentou-lhe uma paisagem diferente daquela com a qual habituara-se todas as manhãs. A neblina invernal metamorfoseara os jardins em nebulosa, engolindo o horizonte. Tudo o que restara ali era a trilha de cascalho entre os canteiros de flores, conduzindo para além dos muros de sua casa.
Caminhando sobre as pedras, o mundo parecia fechar-se em denso segredo. Olhar colado ao solo, em solo o universo fez-se chão, e as texturas alternando-se vagarosamente, até a areia da praia, úmida, macia, uniforme, dominar a visão. Sobre ela, pegadas inscreviam o humano no mundo. Etéreo e onipresente, o ruído branco que o mar provinha contrastava com a polifonia da memória e com as veredas criadas pelos passos firmes deixados por aquele rapaz na praia. Memórias que eram, igualmente, veredas, torturantes e oxidadas pelo contato com o ar.
Quanto mais explorava a polifonia de seus lembranças, mais perdia-se em si mesmo. E em perder-se, encontrava-se. Quanto mais solto em si, mais a sensação de plenitude e segurança ganhava substância pele adentro. Aos poucos, o vazio em seu peito preenchia-se de conforto pois, ali, completamente sozinho a ausência tornava-se presença, o estado puro de uma felicidade experimentada como inexistência de qualquer respiração além da sua.
Extático, a água finalmente tomou seus pés. Ondas lentas e disciplinadas revolviam a areia que sustentava. O chão, instável, impôs-se como metáfora da vida, sua vida, enquanto lágrimas rolavam pelo seu rosto, em queda livre, de encontro com o mar. Lembrou-se dos pais, de sua infância, do companheiro que deixara para trás, envolto em sono profundo. Passou a mão em torno do pescoço, como se sentisse sufocado. Parou por um instante, percebendo o avanço da claridade. Voltou a caminhar e quanto mais penetrava o mar, mais o curso das lembranças que serpenteava havia dias em sua cabeça encontrava uma foz. Seu choro diluía seus sentimentos no mar. Sal encontrando o sal no mesmo ritmo em que seus últimos dias despedaçavam-se feito papel molhado.
Cadente, o mar aconchegou-se à sua cintura. A água cortava, de tão gelada. Porém, o frio não causava-lhe incômodo. Ao contrário: parecia confortá-lo. Em seus pensamentos, a vida era-lhe mais gélida que o mar naquela manhã, a convivência com as pessoas arroxeava-lhe a alma e a inexorável passagem dos dias fazia-lhe ranger os dentes de dor, muito mais que o frio. Parou de pensar, mas não de mover-se. E com o mar já acariciando-lhe os lábios, encheu seu peito daquilo que o sufocava pela última vez. Naquele instante, ele abandonara a extenuante deriva da vida, partindo para o que parecia-lhe o mais absoluto dos portos.